sexta-feira, 8 de junho de 2018

Artigo: A saúde indígena no Brasil - história e desafios













Por Ruben Schindler Maggi
Pediatra, consultor em saúde materno infantil do IMIP
S
upervisor técnico de saúde indígena em Pernambuco

Conforme o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE-2010), a população indígena brasileira corresponde a pouco menos de 0,5% da população, algo em torno de 890.000 habitantes. Considerando que alguns imaginaram a extinção dos nossos indígenas entre as décadas de 1950 e 1970, época em que as cifras oficiais estimavam em 120.000 os sobreviventes dos povos naturais encontrados pelos portugueses em 1500. Chama a atenção o aumento expressivo deste grupo nos últimos anos, o que parece corresponder mais a mudanças nos critérios de identificação, estimulado pelas políticas de inclusão de minorias, e não a fatores demográficos. 
Na história da colonização das Américas milhões de indígenas foram mortos, não apenas por guerras com os colonizadores espanhóis e portugueses, mas principalmente por doenças trazidas do velho mundo, especialmente infecções como gripe, sarampo e tuberculose. Há relatos inclusive de contágios propositais, como surtos de varíola quando as formas de contaminação já eram conhecidas. Estes fatos históricos mantêm vigência visto que, usualmente, por trás destas situações estavam os conflitos pela posse da terra, problema ainda latente em grande parte do nosso país, com indefinição na demarcação dos territórios indígenas, muitas vezes situados em regiões de elevado interesse agrícola, florestal e pecuário.
Sendo a maioria dos povos indígenas de comportamento extrativista para sua alimentação, o território vasto era fundamental para garantir a subsistência. Então os problemas nutricionais foram se agravando, na mesma medida em que as terras indígenas foram sendo ocupadas por colonos e fazendeiros, muitas vezes com apoio explícito de governos municipais, estaduais e federal. 
As políticas compensatórias recentes, através de diversos tipos de subsídios, vêm determinando mudanças radicais no comportamento alimentar dos indígenas, com aumento significativo da ingesta de alimentos industrializados, onde predominam excesso de calorias vindas de gorduras e carboidratos de má qualidade. Mudanças que têm facilitado a aquisição de doenças como síndromes metabólicas, obesidade, diabetes e hipertensão arterial, doenças pouco frequentes nestas comunidades há algumas décadas. Tudo isto piorado pelo crescente sedentarismo, que atinge a população brasileira quase sem distinção, incluindo crianças e adolescentes, com excesso de horas dedicadas aos divertimentos televisivos e digitais, que demandam pouco ou nenhum esforço físico.    
No Brasil colonial, as populações indígenas, assim como os negros trazidos da África, sempre foram tratadas de forma desigual e menosprezados pelas classes dominantes, sem grandes restrições morais. Influenciados pelos pensadores iluministas europeus dos séculos XVIII e XIX é que se fortalecem os conceitos de igualdade, fraternidade, liberdade em toda a América, incluindo o Brasil. Se iniciam então os processos de independência que muitas vezes já introduziam algumas políticas para os grupos menos privilegiados. 
No Brasil, apenas em 1910 surge o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mas sendo órgão vinculado ao Ministério de Agricultura, obviamente priorizava as questões de propriedade das terras. Só na década de 1950 surge o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) vinculado ao Ministério da Saúde (MS), destinado a prestar assistência em regiões de difícil acesso. 
Na história mais recente, se destaca a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, mas sempre com insatisfações generalizadas determinadas, em boa parte, pelas fortes ingerências políticas. Fato que levou os legisladores a definirem um modelo de atendimento específico para povos indígenas na constituição de 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), fazendo com que em 1991 a saúde indígena passe da FUNAI para o MS, que cria os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) como “base operacional para a política de atenção à saúde das populações indígenas no âmbito do SUS”, sob a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). 
A descaracterização técnica desta última, também pelas interferências políticas, continuou motivando conflitos com as comunidades indígenas e as organizações prestadoras de serviços de saúde, o que levou o MS a criar a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) em 2010. A SESAI adotou a política de transferir e compartilhar a gestão dos DSEIs para organizações sociais, momento em que o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP) passou a fazer parte ativa deste processo. 
Desde 2011, nesta parceria com o MS, o IMIP criou a Coordenação de Saúde Indígena, iniciativa institucional que possui como principais objetivos desenvolver apoio gerencial, técnico e financeiro para a “Atenção Básica à Saúde Indígena” e a “Promoção do Saneamento Ambiental em Terras Indígenas”. Inicialmente, através da gestão dos DSEIs de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, estendendo posteriormente as ações para os estados da Bahia, Ceará e Maranhão, executando ações complementares na atenção integral à saúde dos povos indígenas destes estados.  
Esta iniciativa veio somar às colaborações que o MS e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) já desenvolviam em outras comunidades indígenas no Brasil desde 2005, com destaque para as etnias tikunas (Amazonas), xavantes (Mato Grosso), guaranis kaiowás (Mato Grosso do Sul) e ianomâmis (Roraima), estados que concentram a maior parte da população indígena brasileira.  
Em conjunto com estas atividades, o IMIP resolveu também desenvolver ações para que os estudantes de diversas áreas da saúde possam realizar práticas acadêmicas nas aldeias, orientados pelas equipes de saúde locais. Várias destas experiências pioneiras têm sido relatadas e apresentadas em congressos. Temos o objetivo de que isto possa se tornar rotina nas escolas formadoras de recursos humanos, como forma de contribuir não apenas com uma melhor assistência nas comunidades, mas também mostrar aos estudantes uma realidade que faz parte da população que deverão assistir. 
O trabalho assistencial e de ensino, quando possível, devem ser complementados com atividades de pesquisa, respeitando as especificidades que estas ações devem ter em populações vulneráveis. Estes conhecimentos devem ser comunicados, relatados e publicados, como uma forma de contribuição e demonstração de respeito, desde já imaginando que encontraremos realidades impensadas.
Embora as terras potencialmente indígenas no Brasil correspondam a 12% do território nacional, com algumas já demarcadas e muitas outras em conflito, nem todas estão aptas para garantir a sobrevida com qualidade. Já aquelas de melhor potencial produtivo estão em permanente litígio com posseiros, garimpeiros e outros produtores rurais, sem que as autoridades tenham conseguido definir políticas que garantam paz e produtividade de maneira harmônica. 
O impacto desta situação de conflito rebota na área da saúde de forma significativa, ao criar grandes dificuldades para encontrar recursos humanos que estejam dispostos a trabalhar nestas condições. Desta forma, os desafios permanecem vigentes na tentativa de encontrar modelos adequados para prestar assistência sanitária integral às comunidades indígenas, assim como a outras populações não indígenas isoladas e distantes de grandes centros. 
Uma das estratégias bem-sucedidas é a formação de agentes indígenas de saúde, que por serem indígenas, morando nas comunidades e tendo a aprovação dos próprios usuários, se tornam atores fundamentais para desenvolver ações especialmente preventivas, que seguramente são as que têm maior impacto nas pessoas e na população. Além disso, entendem melhor a cultura indígena e a medicina tradicional, facilitando o que deveria continuar a ser o exemplo de como temos que trabalhar com estas comunidades, respeitando as suas crenças sobre a origem dos problemas de saúde, quase sempre determinados por desequilíbrios entre o comportamento do homem em relação ao seu meio ambiente. 
É neste ambiente onde eles procuram a sua cura: na água, alimentos, chuva, ervas, plantas, fogo, fumaça, sol, lua, estrelas. É aí que os pajés, xamãs, curandeiros, benzedeiros, comadres, entre outros, são os verdadeiros e maiores especialistas. Quando levamos para eles a “nossa” medicina ocidental tradicional (biomédica, tecnológica, farmacológica, baseada em evidências), tentamos quase sempre impor o nosso conhecimento, aquilo que nós “sabemos” e acreditamos ser verdadeiro. Mas, seria interessante também estarmos dispostos a aprender deles, ou com eles, toda a sabedoria tradicional. Este respeito à natureza, ao meio ambiente, aos alimentos naturais, aos nossos semelhantes, seguramente nos levará a encontrar uma saúde plena, conforme a Organização Mundial de Saúde a define, não apenas como ausência de doença, mas sim como o estado de completo bem-estar físico, mental e social. Vamos trabalhar por isto.

*Os artigos publicados no Blog Saúde e Bem Estar são escritos por especialistas convidados pelo domínio notável na área de saúde. As publicações são de inteira responsabilidade dos autores, assim como todos os comentários feitos pelos leitores/internautas.

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