Por Ruben Schindler Maggi
Pediatra, consultor em saúde materno infantil
do IMIP
Supervisor técnico de saúde indígena em Pernambuco
Supervisor técnico de saúde indígena em Pernambuco
Conforme o último censo do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE-2010), a população indígena brasileira
corresponde a pouco menos de 0,5% da população, algo em torno de 890.000
habitantes. Considerando que alguns imaginaram a extinção dos nossos indígenas
entre as décadas de 1950 e 1970, época em que as cifras oficiais estimavam em
120.000 os sobreviventes dos povos naturais encontrados pelos portugueses em
1500. Chama a atenção o aumento expressivo deste grupo nos últimos anos, o que
parece corresponder mais a mudanças nos critérios de identificação, estimulado
pelas políticas de inclusão de minorias, e não a fatores demográficos.
Na história da colonização das Américas milhões
de indígenas foram mortos, não apenas por guerras com os colonizadores
espanhóis e portugueses, mas principalmente por doenças trazidas do velho
mundo, especialmente infecções como gripe, sarampo e tuberculose. Há relatos
inclusive de contágios propositais, como surtos de varíola quando as formas de
contaminação já eram conhecidas. Estes fatos históricos mantêm vigência visto
que, usualmente, por trás destas situações estavam os conflitos pela posse da
terra, problema ainda latente em grande parte do nosso país, com indefinição na
demarcação dos territórios indígenas, muitas vezes situados em regiões de
elevado interesse agrícola, florestal e pecuário.
Sendo a maioria dos povos indígenas de
comportamento extrativista para sua alimentação, o território vasto era
fundamental para garantir a subsistência. Então os problemas nutricionais foram
se agravando, na mesma medida em que as terras indígenas foram sendo ocupadas
por colonos e fazendeiros, muitas vezes com apoio explícito de governos
municipais, estaduais e federal.
As políticas compensatórias recentes, através
de diversos tipos de subsídios, vêm determinando mudanças radicais no comportamento
alimentar dos indígenas, com aumento significativo da ingesta de alimentos
industrializados, onde predominam excesso de calorias vindas de gorduras e
carboidratos de má qualidade. Mudanças que têm facilitado a aquisição de
doenças como síndromes metabólicas, obesidade, diabetes e hipertensão arterial,
doenças pouco frequentes nestas comunidades há algumas décadas. Tudo isto
piorado pelo crescente sedentarismo, que atinge a população brasileira quase
sem distinção, incluindo crianças e adolescentes, com excesso de horas
dedicadas aos divertimentos televisivos e digitais, que demandam pouco ou
nenhum esforço físico.
No Brasil colonial, as populações indígenas,
assim como os negros trazidos da África, sempre foram tratadas de forma
desigual e menosprezados pelas classes dominantes, sem grandes restrições
morais. Influenciados pelos pensadores iluministas europeus dos séculos XVIII e
XIX é que se fortalecem os conceitos de igualdade, fraternidade, liberdade em toda
a América, incluindo o Brasil. Se iniciam então os processos de independência
que muitas vezes já introduziam algumas políticas para os grupos menos
privilegiados.
No Brasil, apenas em 1910 surge o Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), mas sendo órgão vinculado ao Ministério de Agricultura,
obviamente priorizava as questões de propriedade das terras. Só na década de
1950 surge o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA) vinculado ao
Ministério da Saúde (MS), destinado a prestar assistência em regiões de difícil
acesso.
Na história mais recente, se destaca a criação
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, mas sempre com insatisfações
generalizadas determinadas, em boa parte, pelas fortes ingerências políticas.
Fato que levou os legisladores a definirem um modelo de atendimento específico
para povos indígenas na constituição de 1988, com a criação do Sistema Único de
Saúde (SUS), fazendo com que em 1991 a saúde indígena passe da FUNAI para o MS,
que cria os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) como “base
operacional para a política de atenção à saúde das populações indígenas no
âmbito do SUS”, sob a coordenação da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
A descaracterização técnica desta última,
também pelas interferências políticas, continuou motivando conflitos com as comunidades
indígenas e as organizações prestadoras de serviços de saúde, o que levou o MS a
criar a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) em 2010. A SESAI adotou a
política de transferir e compartilhar a gestão dos DSEIs para organizações
sociais, momento em que o Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando
Figueira (IMIP) passou a fazer parte ativa deste processo.
Desde 2011, nesta parceria com o MS, o IMIP
criou a Coordenação de Saúde Indígena, iniciativa institucional que possui como
principais objetivos desenvolver apoio gerencial, técnico e financeiro para a
“Atenção Básica à Saúde Indígena” e a “Promoção do Saneamento Ambiental em
Terras Indígenas”. Inicialmente, através da gestão dos DSEIs de Pernambuco,
Paraíba, Alagoas e Sergipe, estendendo posteriormente as ações para os estados da
Bahia, Ceará e Maranhão, executando ações complementares na atenção integral à
saúde dos povos indígenas destes estados.
Esta iniciativa veio somar às colaborações que
o MS e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) já desenvolviam em outras
comunidades indígenas no Brasil desde 2005, com destaque para as etnias tikunas
(Amazonas), xavantes (Mato Grosso), guaranis kaiowás (Mato Grosso do Sul) e
ianomâmis (Roraima), estados que concentram a maior parte da população indígena
brasileira.
Em conjunto com estas atividades, o IMIP
resolveu também desenvolver ações para que os estudantes de diversas áreas da
saúde possam realizar práticas acadêmicas nas aldeias, orientados pelas equipes
de saúde locais. Várias destas experiências pioneiras têm sido relatadas e
apresentadas em congressos. Temos o objetivo de que isto possa se tornar rotina
nas escolas formadoras de recursos humanos, como forma de contribuir não apenas
com uma melhor assistência nas comunidades, mas também mostrar aos estudantes
uma realidade que faz parte da população que deverão assistir.
O trabalho assistencial e de ensino, quando
possível, devem ser complementados com atividades de pesquisa, respeitando as
especificidades que estas ações devem ter em populações vulneráveis. Estes
conhecimentos devem ser comunicados, relatados e publicados, como uma forma de
contribuição e demonstração de respeito, desde já imaginando que encontraremos
realidades impensadas.
Embora as terras potencialmente indígenas no
Brasil correspondam a 12% do território nacional, com algumas já demarcadas e
muitas outras em conflito, nem todas estão aptas para garantir a sobrevida com
qualidade. Já aquelas de melhor potencial produtivo estão em permanente litígio
com posseiros, garimpeiros e outros produtores rurais, sem que as autoridades
tenham conseguido definir políticas que garantam paz e produtividade de maneira
harmônica.
O impacto desta situação de conflito rebota na
área da saúde de forma significativa, ao criar grandes dificuldades para
encontrar recursos humanos que estejam dispostos a trabalhar nestas condições. Desta
forma, os desafios permanecem vigentes na tentativa de encontrar modelos
adequados para prestar assistência sanitária integral às comunidades indígenas,
assim como a outras populações não indígenas isoladas e distantes de grandes
centros.
Uma das estratégias bem-sucedidas é a formação
de agentes indígenas de saúde, que por serem indígenas, morando nas comunidades
e tendo a aprovação dos próprios usuários, se tornam atores fundamentais para
desenvolver ações especialmente preventivas, que seguramente são as que têm
maior impacto nas pessoas e na população. Além disso, entendem melhor a cultura
indígena e a medicina tradicional, facilitando o que deveria continuar a ser o
exemplo de como temos que trabalhar com estas comunidades, respeitando as suas
crenças sobre a origem dos problemas de saúde, quase sempre determinados por
desequilíbrios entre o comportamento do homem em relação ao seu meio ambiente.
É neste ambiente onde eles procuram a sua cura:
na água, alimentos, chuva, ervas, plantas, fogo, fumaça, sol, lua, estrelas. É aí
que os pajés, xamãs, curandeiros, benzedeiros, comadres, entre outros, são os
verdadeiros e maiores especialistas. Quando levamos para eles a “nossa”
medicina ocidental tradicional (biomédica, tecnológica, farmacológica, baseada
em evidências), tentamos quase sempre impor o nosso conhecimento, aquilo que nós
“sabemos” e acreditamos ser verdadeiro. Mas, seria interessante também estarmos
dispostos a aprender deles, ou com eles, toda a sabedoria tradicional. Este
respeito à natureza, ao meio ambiente, aos alimentos naturais, aos nossos
semelhantes, seguramente nos levará a encontrar uma saúde plena, conforme a
Organização Mundial de Saúde a define, não apenas como ausência de doença, mas
sim como o estado de completo bem-estar físico, mental e social. Vamos
trabalhar por isto.
*Os
artigos publicados no Blog Saúde e Bem Estar são escritos por especialistas
convidados pelo domínio notável na área de saúde. As publicações são de inteira
responsabilidade dos autores, assim como todos os comentários feitos pelos
leitores/internautas.
0 comentários:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário