Por Camilla Costa/BBC
Sophie Deram acha que os
brasileiros merecem mais. Doutora em nutrição e professora na Universidade de
São Paulo (USP), a franco-brasileira acredita que, mesmo que o país tenha uma
boa oferta de produtos naturais e saudáveis, o brasileiro escolhe mal o que
comer. E, quando escolhe alimentos industrializados, tem opções
piores do que em outros países.
"A indústria está
fazendo uma festa de ultraprocessados no Brasil, e com certeza tem que ter um
olhar mais firme do governo para limitar esses excessos. As multinacionais
fazem no Brasil coisas que não se permitiriam fazer em outros países".
Deram
é nutricionista, engenheira agrônoma e especializada em obesidade infantil,
nutrigenômica, transtornos alimentares e neurociência do comportamento. Autora
do livro O Peso das Dietas (Ed. Sextante), defende que uma alimentação com
menos processados evita a adoção das dietas da moda que são, segundo ela,
"um gatilho para engordar".
"Acho que, como
brasileiros, devemos pedir uma melhora na qualidade dos alimentos, tanto
processados quanto in natura. Mais vigilância sobre os agrotóxicos, mais
alimentos in natura dentro dos processados, menos conservantes."
O Guia Alimentar para a População Brasileira
define alimentos ultraprocessados como aqueles que "são formulações
industriais feitas totalmente ou em grande parte de substância extraídas de
alimentos, derivadas de constituintes de alimentos, sintetizadas em
laboratório, realçadores de sabor e aditivos". Por exemplo, refrigerante e
macarrão instantâneo.
Outros, como atum
enlatado e frutas em calda são considerado processados. Já cortes de carne
congelados e leite pasteurizado são considerados minimamente processados.
"Vemos que 95% das
pessoas que fazem dieta fracassam. Quer dizer, todo mundo fracassa. A dieta
restritiva abre a rodovia do engordar", afirma.
Confira
os principais trechos da entrevista:
BBC
Brasil - A alimentação do brasileiro piorou?
Sophie
Deram - O que piorou não foi a nossa alimentação, foi a
neura das pessoas. Elas estão com uma neura absurda. Dá para comer de maneira
super adequada indo na feira, cozinhando e comendo alimentos menos processados.
Mas todo mundo está
sempre de dieta, muitos profissionais fazem o que eu chamo de "terrorismo
alimentar", e a indústria coloca produtos carregados de açúcar e adoçantes
nas prateleiras, por exemplo. Hoje os estudos já sugerem que essa troca de
açúcar por adoçante não é nada saudável.
Enfim, tem um conjunto de
forças que vão contra a boa alimentação apesar de no Brasil haver uma
abundância de frutas e verduras.
BBC
Brasil - Que tipo de forças?
Deram
- O Brasil passou pelo que se chama de transição nutricional, uma mudança
cultural da alimentação. Vemos isso em todos os países, e tem a ver com a
globalização e a urbanização acelerada. Isso muda completamente o modelo.
Mulheres, homens,
inclusive os educadores, muitas vezes não tiveram uma infância na cidade e
agora tem que inventar um novo modelo de viver. Muitos tinham as mães na casa
cozinhando, pegando legumes na feira ou no quintal. De repente, têm que viver
na cidade e compram tudo no supermercado sem nem saber o que há em cada pacote.
Essa transição fez com
que a população começasse a consumir cada vez mais alimentos processados e
ultraprocessados. Em 2007 e 2008, o Brasil foi apontado como um dos países em
que a indústria de alimentos e bebidas mais crescia no mundo.
Houve um investimento
muito grande de marketing dessa indústria aqui. As pessoas que foram viver nas
cidades acabaram sendo educadas pelo marketing da indústria, pela televisão.
Vejo isso no meu consultório: muitas dessas pessoas acreditam que o suco em
caixa é melhor porque dá mais energia ao filho ou porque na embalagem diz que
ele tem cálcio e outras vitaminas.
BBC
Brasil - Mas você defende que dá para comer bem cozinhando mais, comprando mais
produtos in natura na feira e menos processados. Em uma sociedade em que cada vez
mais mães, além dos pais, trabalham fora e o trabalho doméstico está mais caro,
como é possível manter essa rotina?
Deram
- É um desafio cozinhar, é verdade, mas é também uma questão de planejamento.
Trabalhei em um
laboratório de obesidade infantil, e muitas mães de baixa renda faziam um
trabalho ótimo de cozinhar no fim de semana para ter comida pronta. Mas muitas
achavam que era mais saudável comprar pronto porque a comida pronta continha
mais vitaminas.
Vale lembrar que esse
papel também é dos pais, não só das mães. Temos que reorganizar a sociedade,
aprender a lidar com a realidade de hoje, em que todo mundo trabalha e almoça
fora.
BBC
Brasil - Você lançou a campanha #queromaisqualidade, e afirmou que os
brasileiros precisam exigir alimentos melhores, tanto in natura quanto
processados. O que exatamente significa exigir mais qualidade?
Deram
- No caso dos alimentos in natura, precisamos de mais vigilância sobre os agrotóxicos.
Mas é preciso ter cautela com os números divulgados por aí dizendo, por
exemplo, que o brasileiro consome cinco a sete litros de agrotóxico por ano.
Esses números são
divulgados por habitante, mas não devemos esquecer que o Brasil é o maior
exportador do mundo de produtos agrícolas. Então nem tudo o que é produzido
aqui é consumido pela população brasileira. Esses dados nem sempre são
adequados. Acho que deveríamos saber a quantidade de agrotóxicos por quilos de
alimento produzidos.
Outra coisa importante de
lembrar é que estamos num país tropical, que tem menos facilidade de produzir
alimentos orgânicos como os Estados Unidos ou a França. Um país tropical
precisa de pesticidas.
Fazer agricultura
orgânica no Brasil é uma arte, e nunca vamos conseguir ter uma quantidade plena
para alimentar todo mundo. Sou engenheira agrônoma, também entendo a
dificuldade dos agricultores. Temos que parar o terrorismo de acusar a
agricultura dessa maneira, mas o governo precisa de mais vigilância. A atual
não é adequada.
BBC
Brasil - E o que significa exigir qualidade nos alimentos processados?
Deram
- O iogurte vem com foto de morango, mas dentro dele quase não tem morango. Tem
um xarope, um aroma. Porque a lei brasileira permite que não tenha nada de
morango. Se você pega o mesmo produto na Europa, da mesma empresa, ele vai ter
de 8 a 10% de fruta. Ou seja, o país maravilhoso de frutas permite
comercializar um produto com foto de fruta sem exigir certa quantidade de
fruta.
É impressionante como a
qualidade dos alimentos processados aqui é pior do que a gente vê fora. Acho
isso uma coisa inaceitável. Mais qualidade também significa ter menos aditivos,
menos conservantes. Sabemos que eles são necessários para vender os alimentos,
que precisam ser estáveis. Mas a indústria está colocando aqui muitos aditivos
cosméticos. O Guia Alimentar brasileiro até nomeia alguns deles.
Dentro dos alimentos
ultraprocessados, a maioria dos ingredientes são aditivos cosméticos, para dar
um gosto e um aspecto bonitinho pra vender, ou mais açúcar ou gordura. E nosso
cérebro adora açúcar e gordura. Esses alimentos ficam na nossa memória
hedônica, a memória do prazer. Esses alimentos sequestram nosso sistema de
recompensa.
Mas aí começa também um
terrorismo de que não se deve comer nada processado, qualquer coisa da
indústria vira vilão. Isso também não é verdade. Há muitos produtos que são
interessantes, higienizados, práticos.
Esse terrorismo de
pessoas querendo comer tudo fresco atrapalha o dia a dia, porque você demora
muito para achar esses produtos. A comida deve ser, de preferência, in natura,
mas também integrando alguns alimentos processados como base e, de vez em
quando, ocasionalmente, alguns ultraprocessados. Mas não se deve viver disso.
Para crianças, as mães
compram tudo empacotado. Suco de caixinha, bolo empacotado achando que é melhor
porque alegam ser saudável, dizem ter cálcio, vitaminas. Mas o melhor seria um
bolo caseiro, com ovo de verdade. A indústria é capaz de fazer bolo processado
com manteiga, ovo, farinha e um conservante. Mas ela faz com mil xaropes e
gorduras.
BBC
Brasil - Mas, segundo os dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da
Saúde, um em cada cinco brasileiros é obeso. E esse índice aumentou nos últimos
10 anos. Por que isso?
Deram
-Esse levantamento mostrou que as pessoas de
fato estão engordando mais e ficando mais obesas, mas também mostrou que as
pessoas estão comendo mais verduras e legumes e fazendo mais exercícios
físicos. Então não é tão simples assim.
A oferta de alimentos no
Brasil não piorou, mas as pessoas estão escolhendo de maneira pior. Há muita
esperança. A população brasileira ainda come muito alimento de verdade. Os EUA
estão numa situação bem pior. Aqui, 60 a 70% do que comemos ainda é comida de
verdade.
Mas esse índice de
obesidade está crescendo de modo que ninguém sabe explicar. Está acontecendo no
mundo inteiro. Um estudo publicado na (revista científica)
Lancet em 2014 mostrou que nos
últimos 30 anos, cerca de 149 países aumentaram o número de obesos e ninguém
conseguiu diminuir. Estamos revendo até o tratamento. Será que o que estamos fazendo
está ajudando? Provavelmente não.
BBC
Brasil - Revendo o tratamento de que maneira?
Deram
- Estamos vendo que as coisas que passam para obesos e pessoas acima do peso
fazerem atrapalham o processo, em vez de ajudar. Quando você faz uma dieta
muito restritiva você emagrece sim, no começo, mas seis meses a dois anos
depois você volta a engordar.
Vemos que 95% das pessoas
que fazem dieta fracassam. Quer dizer, todo mundo fracassa. A dieta restritiva
abre a rodovia do engordar.
Infelizmente, há um
entendimento errado de que quanto mais magro, mais saudável. A saúde não é
avaliada pelo número na balança, mas por muitos fatores. O peso na balança é um
deles. Há os níveis de colesterol, de insulina, muitos dados são importantes.
Focar tudo no peso é um dos muitos erros da saúde atual.
Outro erro é achar que o
corpo é uma máquina simples de calorias, que se trata do que entra e do que
sai. Cada pessoa tem um corpo diferente e o que você come não é computado no
corpo como calorias e sim como proteína, carboidrato, etc. A pessoa que só
pensa em calorias não cuida da qualidade, e sim da quantidade.
Além disso, esse ganho de
peso em excesso não é necessariamente o problema que você tem que atacar. Às
vezes ele é consequência de um estilo de vida, um problema de saúde, um
desrespeito ao corpo, que engorda para se defender. As pessoas precisam parar de
fazer dieta e fazer as pazes com a comida.
BBC
Brasil - Você diz que dietas da moda, como a low carb (com pouco consumo de
carboidratos), jejum intermitente, sem glúten e sem lactose são
"terrorismo nutricional". Por quê?
Deram
- Por que quem ganha com isso é a indústria porque as pessoas ficam reféns de
produtos ultraprocessados que não têm glúten ou lactose. Quando se começa a
proibir alimentos básicos da nossa cultura, como pão e leite, é preciso se
preocupar. Temos que repensar o comer, mas não proibir tudo o que era da nossa
cultura.
Com certeza há cerca de
2% da população que precisa tirar o glúten, que é uma proteína, por causa das
doenças celíacas. E algumas pessoas têm uma sensibilidade maior do que outras.
Mas as pessoas tratam se isso fosse alergia ao glúten, e não é isso. Não é tão
grave assim.
O que acontece é que no
processo de panificação antigamente, a fermentação era natural e bem mais
lenta. Os micro-organismos digeriam mais o glúten. Já a panificação
industrializada de hoje é rápida, muito brutal. Eles até colocam como
ingrediente dentro desses pães o glúten refinado, para crescer mais rápido.
Isso sim pode irritar nosso sistema intestinal. Comendo mais alimentos in
natura você já volta a uma alimentação mais tranquila.
A lactose, por sua vez, é
o açúcar do leite. Quando viramos adultos, digerimos menos esse açúcar. Algumas
populações de origem asiática ou africana nem conseguem digerir. Na Europa
houve uma mutação genética que faz com que muitos adultos ainda produzam essa
enzima. Muitas pessoas, mesmo com intolerância diagnosticada, toleram um pouco
de lactose.
Low carb é mais um
terrorismo, como se de repente o vilão fosse o carboidrato a todo custo. Tenho
no meu consultório uma vibe de compulsão alimentar por causa desse low carb. O
carboidrato é nossa gasolina para funcionar. Se você corta isso, claro que
emagrece, mas seu cérebro não vai gostar e começa a pedir carboidrato.
As pessoas que ficam low
carb muitas vezes desenvolvem a compulsão por carboidrato. É como se o cérebro
valorizasse mais a comida que foi proibida. Depois da dieta, o cérebro não
responde mais aos sinais simples de ansiedade. Ele mistura sinais de cansaço,
tédio, tristeza, com sinais de fome. E nisso, a tendência é justamente comer
alimentos com carga energética maior, que confortam mais o cérebro - açúcar e
gordura. Aí ela fica com culpa porque fica low carb o dia inteiro e no fim da
tarde come um pacote de bolacha.
Esse terrorismo faz com
que as pessoas busquem mais ajuda de profissionais e de produtos
industrializados. Há um mercado aí por trás disso. Já tive pacientes que
estavam sem glúten, mas, para ser mais fácil, só compravam produtos empacotados
onde estava escrito sem glúten. E eu dizia: "Mas gente, arroz e feijão são
sem glúten. Mandioca, pão de queijo...".
Jejum intermitente já se
mostrou interessante em adultos em pesquisa controlada, em laboratório, em
hospital. Mas em casa, não faça. Você funciona no dia a dia com muitas
cobranças. Se você não está alimentando seu corpo, vira uma bomba prestes a
explodir. De início se emagrece, mas o problema é manter.
BBC
Brasil - E existe algum tipo de dieta que valha a pena fazer?
Deram
- As dietas ayurvédicas são muito interessantes, se são bem feitas. Mas é
preciso tomar cuidado porque muitos usam esse termo para fazer dietas da moda.
Também é preciso combater
o que chamo de "comer emocional". Quando você está triste, é melhor
chorar do que comer uma barra de chocolate. Mas tudo isso pede um investimento
de tempo, de energia, de concentração que as pessoas não querem fazer.
Seus avós sentavam à mesa
e comiam mais ou menos em função da fome. Não tinham esse conhecimento de
glúten, lactose, blá blá blá que atrapalha a alimentação. Se tinha uma
goiabada, pegavam um pedaço. E hoje temos que treinar as pessoas a voltar a
funcionar assim. Temos tudo dentro de nós para funcionar corretamente, mas
terceirizamos nossa fome, olha que loucura.
É importante dizer às
pessoas que emagrecer não é só questão de #foco, #força e #fé (hashtags
populares para tratar do tema no Instagram). O interessante seria as pessoas
tentarem manter o peso e mudar sua alimentação. É possível treinar mais o comer
emocional antes de tentar emagrecer 10 quilos. Ou seja, comer porque está com
fome ou vontade de comer. Quando está triste, chora. Quando está ansioso, liga
para um amigo, sai com o cachorro.
Matéria original no site
da BBC Brasil, disponível aqui.
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