"Chegaram! Eles já
estão na farmácia. É dia de festa..."
O relógio marcava 7h57 de
terça-feira, 7 de agosto, quando a nutricionista potiguar Michelle Costa, de 32
anos, leu a notícia no WhatsApp e soluçou, aos prantos: "Não
acredito".
Eram as primeiras seis
doses do medicamento de que precisa para impedir que a doença do filho de 1 ano
e 4 meses continue avançando.
Elas haviam chegado a
Natal, no Rio Grande do Norte, onde moram - após quase quatro meses "de
luta".
"E confirmar isso
foi como tirar metade do peso que carrego nas costas."
AME
Guilherme foi
diagnosticado em abril com Atrofia Muscular Espinhal (AME), doença rara e
degenerativa que causa perda de função em células ou órgãos - e, nesse caso,
gera dificuldades de locomoção e favorece o desenvolvimento de problemas
respiratórios que, em algumas situações, podem levar à morte nos primeiros 2
anos de vida.
De forma geral, também
deixa as pernas mais fracas que os braços e torna os atos de mamar e engolir
outros alimentos mais difíceis.
Guilherme sente, em
parte, isso.
Ele não tem dificuldades
respiratórias, mas causa "medo" nos pais se tosse ou tem refluxo, com
possibilidade de engasgo.
O bebê também não mexe as
pernas como antes, não senta sem apoio, não deu os primeiros passos, nem tem
força para envolver a mãe no que ela chama de "sonho": "Um
abraço."
Neste depoimento à BBC
News Brasil, Michelle narra "a dor" de encarar a doença e a
verdadeira "corrida contra o tempo" em que ingressou com o marido, o
analista de sistemas Rinaldo Silveira, de 30 anos, para deter as perdas que vê,
dia a dia, aumentarem no corpo do filho.
O caminho que eles
percorreram até agora envolve a via judicial, pela qual conseguiram que a União
banque o início do tratamento com a única medicação aprovada para a AME, o
Spinraza. O custo somado das seis primeiras doses foi de aproximadamente R$
2,16 milhões. Cada uma saiu por R$ 360 mil. A primeira foi aplicada na
quinta-feira, 16 de agosto.
Outras famílias buscam o
mesmo tratamento, em ao menos 106 ações que tramitam atualmente no Brasil.
Esta é a história de
Guilherme:
Ser mãe sempre foi um
sonho.
Na primeira gravidez,
sofri um aborto espontâneo e sentir Gui se formando dentro de mim era algo
inexplicável.
Ele mexia bem, crescia
bem. E nasceu em 7 de março de 2017, com 39 semanas.
'Nunca pensei que eu iria viver esse
mundo'
Para viver a maternidade,
me dedicar a ela, eu tive que desacelerar.
Eu saía de um trabalho e
ia para outro, mas, quando engravidei, optei por ficar em um só emprego.
A coincidência é que o
que eu tive de deixar era como nutricionista para crianças com AME tipo 1. A
forma mais grave da doença.
Essas crianças recebiam
cuidados médicos em casa, ficavam acamadas, se alimentavam por sonda, usavam
ventilação mecânica (para auxiliar a respiração). Eu me perguntava como deveria
ser o dia a dia daquelas famílias.
Pensava em como deveria
ser difícil, mas nunca que eu - embora com um caso diferente - iria também
viver esse mundo.
Dificuldades
Quando Gui começou a
crescer, percebi que ele não conseguia levar o pezinho até a boca, como outros
bebês fazem.
Ele também não engatinhou
e, quando completou seis meses, tinha dificuldade para rolar.
O pediatra disse que
podia ser só do desenvolvimento dele, talvez mais lento que o de outras
crianças.
Mas o tempo foi passando
e isso não melhorava.
Ele não conseguia sentar
sem que a gente ajudasse, nem ficava com o tronco totalmente ereto. Se
desequilibrava. Não conseguia sustentar o peso do corpo e se apoiar nas coisas
para ficar em pé.
Me diziam para ter fé,
mas não era questão de fé. Ele não estava evoluindo nem com fisioterapia e eu
queria saber o motivo.
Pedi encaminhamento para
o neurologista e, entre os exames que passou, havia um genético para confirmar
ou descartar se tinha AME.
O médico disse para eu
não me assustar, que aquela era só uma possibilidade, mas, quando vi a sigla na
requisição do exame, meu chão se abriu. Fiquei desnorteada. Eu sabia o que ela
significava, só não sabia que havia outros tipos da doença, menos graves.
Comecei a pesquisar a
respeito, e, quanto mais conhecia outras histórias, mais enxergava Guilherme
nelas.
O resultado do exame
demorou pouco mais de um mês. Era AME tipo 2. Eu vi em casa, com o meu marido.
E foi muito dolorido.
A 'batalha' pela medicação
A AME é uma doença
degenerativa, com expectativa de vida baixa.
A medicação consegue
parar a doença, mas só estava disponível fora do Brasil e o preço dela era um
balde de água fria.
Mas eu não ia admitir
ouvir alguém dizer que não tinha o que fazer, que eu fosse para casa aproveitar
o tempo com o meu filho.
Eu disse que ia lutar de
todas as maneiras e que a gente ia conseguir. Que eu não vou perder o meu filho
para essa doença.
E aí foi como se tivesse
disparado um relógio e a gente tivesse que correr. Tínhamos que correr como se
estivéssemos numa maratona.
'Tive que buscar o nascimento de
outros sonhos'
Descobrir a doença foi
como um luto. Foi a morte de alguns sonhos.
Me vi parada em uma
creche, chorando, olhando outras crianças, pensando nas coisas que
possivelmente eu não teria com o meu filho.
É muito massacrante ver
que diariamente há perdas.
Dói pegar uma foto ou um
vídeo e ver que ele já não faz coisas que meses atrás conseguia.
Mas eu não tive tempo
para sofrer demais. Tive que buscar o nascimento de outros sonhos, levantar a
cabeça e olhar para frente, porque Guilherme não tem tempo a perder. Por mais
que eu quisesse deitar e ficar chorando com o diagnóstico, eu não podia.
Tive que tomar uma
atitude.
Foi por isso que
mergulhei na campanha imediatamente (para levantar recursos) e fui à Justiça.
'Queria que ajudassem por
solidariedade, e não por pena'
O diagnóstico da AME foi
confirmado em 7 de abril.
No dia seguinte,
começamos a definir o que iríamos fazer para levantar os recursos do
tratamento. Não podia confiar só na Justiça.
Eu queria que as pessoas
conhecessem a doença sem que ele fosse exposto demais, porque é apenas um bebê,
e falar das perdas que tem é um sofrimento. Queria que ajudassem por compaixão,
por solidariedade, e não por pena.
E muita gente ajudou,
comprando camisas, sandálias, participando de sorteios, de uma vaquinha online
e de atividades como um jogo de futebol e uma corrida que fizemos.
No dia 16 do mesmo mês
ingressamos com uma ação contra a União, o Estado e o município e ganhamos um
ano de tratamento, mas a União recorreu e eu sabia que muitas famílias ganham
liminares, mas até receberem a medicação é um longo processo.
Seis doses do medicamento
que pedimos só chegaram esta semana. Foram compradas pela União. O juiz também
mandou bloquear recursos nas contas do Estado e do município (Natal),
referentes a outras quatro doses. Mas esse processo ainda está em curso.
Cada dose custou mais ou
menos R$ 360 mil.
A primeira foi aplicada
nesta quinta-feira (16 de agosto). Eu estava do lado de fora da sala,
esperando. Quando ouvi a equipe dizer 'deu certo' foi muito emocionante. Eu,
meu marido, as enfermeiras, pessoas que estavam no corredor...todo mundo
chorou. Parecia cena de novela.
Agora, ele deve tomar uma
dose a cada 15 dias, até completar a quarta.
Depois, precisará tomar
uma a cada quatro meses, para sempre - ou até descobrirem a cura da doença.
Tomar a primeira foi como
um renascimento.
Eu acompanho outras
crianças que tomaram e vejo que há resultados.
Com Gui, um dos meus
sonhos é o dia em que vou conseguir um abraço.
Ele já me deu um, certa
vez, mas do jeitinho dele.
Ele estava chorando no
berço. Eu o deitei na cama comigo, virado para mim, e de repente senti as
mãozinhas segurando o meu pescoço.
Foi assim que adormeceu.
Com o abraço que consegue me dar, porque ainda não tem força para o movimento
como outras pessoas fazem.
Eu tento dar valor aos
pequenos gestos dele, que para mim são muito grandes. Fico feliz com cada
conquista.
A cadeira que virou mundo
Hoje Gui faz dois tipos
de fisioterapia, e também tratamento com a fonoaudióloga.
Quando está em casa,
procuramos estimulá-lo de várias formas.
Ele tem uma cadeirinha
portátil, que permite que tenha um apoio maior, que fique com os pezinhos no
chão.
Eu faço dessa cadeira o
mundo dele. Ponho brinquedos na bancadinha, dou giz de cera, blocos de
encaixar.
Uma criança na idade dele
deveria estar abrindo os armários, correndo pela casa, mas, como ele não faz
isso, vai se desenvolvendo de outras formas. Dentro das limitações que tem,
também vai descobrindo as coisas.
A AME no Brasil
A AME está entre as mais
de 8 mil doenças raras conhecidas no mundo e pode afetar crianças e adultos. No
Brasil, não há estimativas oficiais sobre o número de casos. Mas, de forma
global, estima-se que a cada 100 mil bebês nascidos vivos, entre 7 e 10 sejam
portadores.
Existem quatro formas da
doença. Os tipos 1 e 2 são os mais graves, e seus sinais são mais aparentes em
crianças.
"Os sintomas podem
aparecer ainda no feto, dentro da barriga da mãe, e se estender pela
infância", observa o professor Natan Monsores, coordenador do Observatório
de Doenças Raras da Universidade de Brasília (UnB), um grupo de pesquisa ligado
ao Centro Internacional de Bioética e Humanidades que estuda os efeitos dessas
doenças sobre a qualidade de vida das pessoas afetadas a fim de desenvolver
estratégias para apoiá-las. "Em alguns casos, os sinais da AME são
estáveis ou até regridem", diz.
A AME afeta o sistema
nervoso central, provoca fraqueza muscular e é causada por genes defeituosos,
que a criança geralmente herda do pai e da mãe. São os genes SMN-1, que estão
ligados à sobrevivência dos neurônios que participam da coordenação dos movimentos
do corpo.
O Spinraza
O Spinraza, diz o
professor, é injetável e aplicado no espaço onde está a medula espinhal do
paciente, tratando os casos decorrentes da falta ou defeito do gene SMN-1 no
organismo. O medicamento ajuda um outro gene, o SMN-2, a substituí-lo.
"O medicamento detém
a progressão da doença, mas os efeitos podem variar caso a caso e a recuperação
dos movimentos também depende da combinação com outras abordagens terapêuticas,
como a fisioterapia", acrescenta ele.
O Spinraza é fabricado
por indústrias baseadas na Alemanha e na Itália e, no Brasil, foi registrado
pela americana Biogen, empresa de biotecnologia com foco no desenvolvimento de
terapias para doenças graves neurológicas, autoimunes e raras.
O registro da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi concedido no ano passado, o que o
tornou apto a ser comercializado no país.
Com o registro, o preço
máximo de aquisição para a União atender a demandas judiciais, que era de R$
420 mil por ampola quando precisava comprá-lo em outros países, caiu para R$
209 mil, segundo o Ministério da Saúde.
Por que o preço é tão alto?
Segundo o professor Natan
Monsores, há três explicações para o valor de cada dose atingir esse patamar.
"Estima-se que tem a
ver com os custos de desenvolvimento", diz ele, apontando outras duas
questões: "Trata-se também de uma 'droga órfã' (destinada ao tratamento de
doença rara), logo, o número de usuários do medicamento é pequeno, o que não
permite a diluição do custo na quantidade. O outro ponto é: não se sabe quanto
custou desenvolver a terapia e a empresa detém patentes, logo, é ela que faz o
preço".
Droga órfã é, segundo
ele, "um medicamento destinado ao diagnóstico, prevenção e tratamento de
uma doença rara ou negligenciada, cuja produção não é economicamente viável
devido ao mercado consumidor estritamente reduzido ou carente de recursos
financeiros".
A Biogen, laboratório que
detém o registro do Spinraza, foi procurada pela BBC News Brasil, por e-mail e
telefone, mas não respondeu às questões enviadas sobre o preço até a publicação
desta reportagem.
O Ministério da Saúde diz
que, entre janeiro e junho deste ano, destinou R$ 51,3 milhões para aquisição
do medicamento. E que atualmente 106 processos contra a União pedem o
fornecimento dele, mas que não é possível estimar quanto de desembolso
exigiriam.
O Ministério não comentou
qual a capacidade do Estado para arcar com esse tipo de tratamento e suprir, ao
mesmo tempo, outras necessidades da população na área. Também não respondeu
sobre os critérios para recorrer de decisões favoráveis a pacientes de doenças
raras.
'A espera é uma agonia'
"A judicialização é
a via pela qual os pacientes têm conseguido garantir acesso ao tratamento. E a
espera por ele é uma agonia. É acompanhar a vida do filho ou filha escoar pelos
dedos", diz Monsores, da UnB. "E para os pais que vivenciam o
sofrimento, o tempo é uma eternidade".
O professor defende que,
"num contexto de gestão pública e uso racional de recursos, a análise de
incorporação de medicamentos para doenças raras na rede pública leve em conta
parâmetros diferentes dos usados para as doenças prevalentes".
A incorporação de novas
tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS) - o que inclui medicamentos,
procedimentos e produtos para a saúde - é feita a partir de análise da Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), criada em 2012 para
assessorar o Ministério da Saúde nesse tipo de decisão. Por lei, o prazo para a
tomada de decisão é de 180 dias, prorrogáveis por mais 90.
Incorporação no SUS
O pedido de incorporação
do Spinraza foi submetido em maio deste ano. Se for aprovado, Monsores explica
que ele entraria na Relação Nacional de Medicamentos (Rename) e passaria a ser
distribuído de graça, mediante prescrição, em centros de referência em doenças
raras, geralmente hospitais universitários - e disponibilizado nos hospitais ou
em farmácias de alto custo.
"Isso aconteceu com
as drogas anti-HIV, que não são baratas, e os medicamentos oncológicos",
diz o professor.
"É preciso
considerar não apenas o custo-efetividade dos tratamentos, mas avaliações de
qualidade de vida, ganhos em autonomia dos pacientes, redução de internações e
necessidade de procedimentos complexos. Essa discussão é longa e complexa, mas
precisa ser feita. Países como a Inglaterra e o Canadá já se deram conta disso
e têm adotado parâmetros diferenciados para incorporação de medicamentos para
doenças raras", observa ainda Monsores.
Ele analisa que "o
Ministério da Saúde também precisa definir quanto está disposto a gastar com
medicamentos para doenças raras ou graves, mas, para isso, precisa oferecer um
caminho coerente do ponto de vista metodológico e bioético", o que avalia
que não está acontecendo. "Usar avaliação custo-efetividade ou decidir de
forma política e aleatória quais tecnologias atenderão pacientes não é
condizente com aquilo que os pesquisadores do mundo inteiro têm apontado como
caminho", observa ele.
"É preciso uma
mudança de mentalidade técnica. E essa crítica não é só minha", diz ainda,
afirmando que "muitos técnicos da Conitec têm feito um esforço para ouvir
a comunidade de pacientes e se aproximar de novas metodologias. Mas que a
decisão da plenária da Comissão parece obedecer outras agendas".
Sobre as críticas do
professor, o Ministério da Saúde limitou-se a dizer que "a avaliação para
incorporação de novas tecnologias no SUS se baseia na eficácia, efetividade e
no custo-benefício das tecnologias" e que "os estudos que devem ser
apresentados à Conitec para o pedido de avaliação exigem expertise e acurácia
metodológica".
"Isso porque se
baseiam em revisões sistemáticas da literatura já existente e publicada. E os
estudos adicionais para avaliação econômica estimam a relação de
custo-efetividade e o impacto orçamentário dessa nova incorporação ao
SUS".
O Ministério também
ressaltou "que há esforços para ampliação e oferta de medicamentos para
população brasileira", citando como exemplo o fato de, entre 2010 e 2018,
ter aumentado em 69% a oferta gratuita por meio da Rename.
'Disputa eterna'
Michelle, mãe de Guilherme,
diz que, por enquanto, o futuro que enxerga é "de disputa judicial
eterna" para obter as doses de Spinraza de que o filho precisa.
Com vendas e outras
atividades para levantar recursos, divulgadas por meio das redes sociais, ela e
o marido arrecadaram cerca de R$ 100 mil - foram R$ 19,5 mil desse total, com
uma vaquinha online criada no dia 16 de abril.
"Agora, com as
primeiras doses garantidas, achamos que esse dinheiro também pode ajudar outras
crianças. Estamos estudando como fazer, mas a ideia é usar parte para comprar
equipamentos necessários ao tratamento de Gui e para dar a ele uma melhor
qualidade de vida, e outra para comprar e doar equipamentos essenciais para
quem tem AME - mas ainda estamos verificando como seria isso, para garantir que
a doação ajude realmente quem precisa e seja usada mesmo no tratamento",
diz Michelle.
A sensação agora, segundo
ela, "é de ter chegado ao final de uma maratona, mesmo sabendo que a
jornada ainda será longa".
Fonte:
BBC Brasil
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