Por Nathalia Passarinho/BBC
Foram dois dias em que
mais de 60 pessoas expuseram pesquisas, experiências pessoais, opiniões e
dados. Nesta segunda, o Supremo Tribual Federal (STF) encerrou o segundo e
último dia de audiência pública para debater a ação apresentada pelo PSOL, com
assessoria técnica do Instituto de Bioética Anis, que pede que o aborto não
seja considerado crime quando feito até a décima segunda semana de gravidez.
Em alguns momentos do
debate houve comoção, como quando o médico Sérgio Tavares de Almeida Rego
revelou, emocionado, a história pessoal da família. Ele e a esposa já tinham um
filho de um ano com deficiência quando ela engravidou novamente. Os dois
optaram por um aborto para poderem se dedicar integralmente a Pedro, a quem chamou
de "filho eterno", que precisa de cuidados também na vida adulta.
Falando contra a
descriminalização, Lenise Aparecida Martins Garcia, do Movimento Nacional da
Cidadania pela Vida - Brasil sem aborto, levou um feto de borracha à audiência
para ilustrar seu ponto de vista. "É arbitrária a definição de 12 semanas
(como início da vida humana). Eu não posso desconsiderar o valor de uma pessoa
porque ela é pequenininha. Ela tem mãe e pai. É uma de nós."
E a pesquisadora Débora
Diniz, da Universidade de Brasília e do Instituto Anis, expôs dados que mostram
que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. Mas
a criminalização, ela destaca, têm impacto maior nas mulheres pobres, que
acabam recorrendo a métodos inseguros para interromper a gravidez.
"Se todas as
mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão hoje, teríamos um contingente
de 4,7 milhões de mulheres, pelo menos cinco vezes o sistema prisional, que já
é o quarto do mundo. Por que tão pouca razoabilidade nessa conversa? Aborto não
é matéria de prisão, é de cuidado, de proteção e prevenção", defendeu,
sendo aplaudida de pé após a fala.
Mas o que vai acontecer a
partir de agora? Quando o caso será julgado? E quais ministros já se
posicionaram publicamente sobre o pedido de descriminalização do aborto?
Como será o julgamento
A partir do término das
audiências, um relatório com as falas de quem participou será distribuído a
todos os 11 ministros da Corte, para consultarem, se quiserem, ao redigirem
seus votos.
A relatora da ação,
ministra Rosa Weber, deverá preparar o voto e o relatório do caso - um resumo
das alegações do PSOL e do posicionamento dos órgãos chamados a se manifestar,
como a Advocacia-Geral da União (AGU). Não há prazo para isso.
No julgamento de um
habeas corpus em 2016, a ministra se posicionou favoravelmente a que o aborto
deixe de ser crime. Por isso, há uma expectativa de que Weber se manifeste a
favor do pedido para que o aborto seja descriminalizado.
Após concluir o voto,
Rosa Weber deve pedir a inclusão do processo na pauta de julgamento do plenário
do Supremo.
A decisão sobre que
processos são julgados em cada mês é tomada pelo presidente do STF, após
consulta aos colegas. Possivelmente, quando o voto de Rosa Weber estiver
pronto, a ministra Cármen Lúcia já terá deixado a presidência do Supremo, sendo
substituída por Dias Toffoli, que toma posse em setembro para um mandato de
dois anos.
A BBC News Brasil apurou
que a expectativa dos ministros e do futuro presidente do Supremo é que o
julgamento sobre aborto fique para o ano que vem, já que este ano tem eleições gerais
e há outros processos prontos para julgamento no plenário.
O que pede a ação sobre aborto
A Ação Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 442 argumenta que os artigos do Código Penal que
proíbem o aborto afrontam preceitos fundamentais da Constituição Federal, como
o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à
liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.
O PSOL pede que o aborto
feito até a décima segunda semana de gestação não seja considerado crime. As
advogadas que assinam a ação afirmam que a criminalização do aborto leva muitas
mulheres a recorrer a práticas inseguras, provocando mortes.
Atualmente o aborto é
crime, com pena de até três anos para a gestante que interromper a gravidez. Só
é permitido fazer um aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe ou
feto com anencefalia - nesse último caso, a deliberação coube ao STF.
Como devem votar os ministros?
Três ministros do STF -
Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edison Fachin - já votaram pela
descriminalização ao abordar um pedido de habeas corpus de cinco médicos e
funcionários de uma clínica clandestina de aborto.
A decisão, tomada pela
Primeira Turma do STF em novembro de 2016, vale apenas para aquele caso
concreto, mas já é um forte indicador de como pensam esses três magistrados.
Na ocasião, os ministros
Marco Aurélio Mello e Luiz Fux, que participaram do julgamento, também
concederam o habeas corpus, mas não se posicionaram sobre se o aborto, de forma
geral, deveria deixar de ser crime.
Ricardo Lewandowski é
visto como voto certo contra a descriminalização do aborto, já que ele votou
contra permitir a interrupção da gravidez até em casos de fetos que não seriam
capazes de sobreviver após o parto (em julgamento de 2012 sobre fetos com
anencefalia). Há dúvidas sobre o voto dos demais ministros, mas comentários já
feitos por eles podem dar pistas.
Qual o argumento dos ministros que já
se posicionaram sobre a descriminalização
Luís
Roberto Barroso
O primeiro voto pela
descriminalização foi proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, ao julgar
um pedido de liberdade feito por cinco pessoas envolvidas em procedimentos de
aborto.
Barroso argumentou que os
artigos do Código Penal que criminalizam o aborto violam os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher, além dos direitos fundamentais à autonomia, à
integridade física e psíquica, e à igualdade.
"Como pode o Estado,
isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito,
impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como
se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma,
no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?",
questionou o ministro, no julgamento.
Ele defendeu ainda que
criminalizar o aborto não é uma política eficiente para evitar que interrupções
de gestações aconteçam - apenas impede, afirma, que os abortos sejam feitos com
segurança. Ou seja, a criminalização não protegeria nem a "vida do
feto" nem a da mulher.
"Ela constitui
medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar
(vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de
abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro",
argumentou.
Para embasar esse
argumento, ele citou um estudo da pesquisadora Gilda Sedgh, do Instituto
Guttmacher, de Nova York, que aponta que, em países onde o aborto é crime, as
taxas de aborto chegam a ser mais altas que as de nações onde o procedimento é
legalizado.
"Todos têm o direito
de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à
razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente
controvertido, criminalizar a posição do outro".
Rosa
Weber
Ao acompanhar o voto de
Barroso que considerou a criminalização do aborto inconstitucional, Rosa Weber
argumentou que as mulheres devem ter o direito de interromper de forma segura
uma gestação indesejada.
Para embasar os
argumentos, ela citou tratados internacionais de direitos humanos e decisões
judiciais de cortes de outros países, como o famoso caso "Roe vs
Wade" na Suprema Corte americana, que abriu o caminho para a legalização
do aborto nos Estados Unidos, em 1973.
"O aborto
clandestino é realidade ascendente dos países que não disciplinaram
juridicamente a prática da interrupção da gravidez por decisão da mulher no
primeiro trimestre da gestação, que implica sérios riscos de saúde e aumento da
mortalidade materna por complicações dos procedimentos clandestinos de aborto,
os quais são utilizados pelas mulheres que não possuem condições econômicas de
custear o tratamento particular", argumentou a ministra.
Assim como Barroso, Rosa
Weber citou pesquisas que apontam que os países com as legislações mais
restritivas ao aborto são os que têm as maiores taxas de interrupção provocada
da gravidez.
"A ingerência
estatal no primeiro trimestre da gestação deve militar em favor da proteção da
mulher em ter condições seguras de realizar a interrupção voluntária da
gestação."
Edson
Fachin
Embora não tenha
especificado os argumentos, Fachin decidiu acompanhar a posição de Barroso em
vez de seguir os fundamentos de Marco Aurélio, relator do caso, para a
concessão do habeas corpus às cinco pessoas presas preventivamente por fazerem
abortos clandestinos. O efeito dos votos de Marco Aurélio e de Barroso era o
mesmo - a concessão da liberdade ao grupo.
A diferença é que o primeiro
concedeu o habeas corpus por considerar que a prisão preventiva já não se
justificava - os suspeitos não ofereceriam perigo às investigações, nem
indicavam intenção de fugir. Barroso foi além e disse que o aborto, de forma
geral, não pode ser considerado crime, se feito com consentimento da gestante
até o terceiro mês de gravidez. Portanto, na visão do ministro, aquelas pessoas
nem sequer deveriam ter sido processadas.
Ao acompanhar Barroso na
visão de que a criminalização do aborto é inconstitucional, Fachin lembrou, a
título apenas de "comentário", que o Papa Francisco abriu a
possibilidade para que sejam absolvidas, mediante confissão, mulheres e
profissionais de saúde que tiverem feito abortos.
A posição dos demais ministros
Os demais ministros ainda
não se manifestaram diretamente sobre o tema. Alguns fizeram comentários que
dão indícios sobre como enxergam a criminalização do aborto.
Gilmar
Mendes
Durante uma sessão de
julgamento do dia 23 de março, Gilmar Mendes criticou Barroso por ter entrado
no mérito da descriminalização do aborto no julgamento do habeas corpus do
grupo que operava a clínica clandestina. Para Mendes, o tema só poderia ter
sido discutido em plenário numa Ação Por Descumprimento de Prefeito Fundamental
(ADPF), e não na análise de um pedido específico de liberdade.
"É preciso que a
gente denuncie isto, que a gente anteveja esse tipo de manobra, porque não se
pode fazer isso com o Supremo Tribunal Federal: 'Ah, agora eu vou dar uma de
mais esperto e vou conseguir a decisão do aborto, de preferência na turma com
dois, com três ministros, aí a gente faz um dois a um'".
Alexandre
de Moraes
O ministro Alexandre de
Moraes se esquivou de responder a perguntas sobre aborto quando foi sabatinado
pelo Senado antes de assumir uma cadeira no Supremo. Na época, ele argumentou
que não poderia antecipar o voto, já que havia ações sobre o tema no STF.
Ricardo
Lewandowski
Lewandowski votou contra
a liberação do aborto em caso de feto com anencefalia (com formação incompleta
do cérebro a ponto de ser inviável a vida do bebê). O placar do julgamento de
2012 foi 8 a 2, com a maioria optando por permitir a chamada "antecipação
terapêutica" do parto nesses casos.
Como Lewandowski foi um
dos dois votos contrários, é natural esperar que ele também não seja favorável
à descriminalização de forma mais ampla.
Na julgamento de 2012, o
ministro argumentou que qualquer decisão sobre tema deve ser tomada pelo
Legislativo e que permitir o aborto no caso de fetos sem cérebro abriria
caminho para interrupções de gestação de embriões com doenças genéticas.
José
Dias Toffoli
Antes de tomar posse como
ministro, Toffoli afirmou, em sabatina no Senado, que criminalizar o aborto não
é uma política eficaz.
"Eu sou contra o aborto.
Agora, penso que a sociedade deve debater quais os mecanismos mais eficientes
para diminuir o número de abortos no país. Porque criminalizar o aborto não é
um meio eficaz."
Luiz
Fux
Em
entrevista à BBC News Brasil, Luiz Fux afirmou considerar que o tema
deve ser debatido pelo Legislativo, não pelo Supremo.
"Eu tenho a
impressão de que algumas questões são judicializadas porque o Parlamento não
quer pagar o preço social de tomar a decisão adequada. Mas, na verdade, o lugar
próprio de decidir sobre a descriminalização do aborto é o Parlamento e não o
Supremo Tribunal Federal", disse.
Mas, na mesma entrevista,
ele também ponderou que o aborto deve ser visto como uma questão de "saúde
pública", visão normalmente defendida por grupos favoráveis à
descriminalização.
"Entendo que é um
problema de saúde pública que a sociedade tem que decidir por meio de seus
representantes. Agora, o Judiciário pode vir a ser provocado sobre essa
questão. E então, num momento oportuno, vou me manifestar", afirmou à BBC
News Brasil.
Cármen
Lúcia
Cármen Lúcia votou a
favor da liberação do aborto em caso de feto anencéfalo e a favor de pesquisas
com células tronco embrionárias, mas nunca entrou no mérito sobre se criminalizar
o aborto de forma geral é ou não uma violação da Constituição.
Marco
Aurélio Mello
Foi o relator da ação que
permitiu aborto em caso de feto com anencefalia - e votou a favor de permitir o
procedimento nesse caso. "O Estado não é religioso nem ateu. O Estado é
simplesmente neutro. O direito não se submete à religião', disse o ministro, na
ocasião.
"O que está em jogo
é a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres. Elas têm que
ser respeitadas, tanto as que optam por prosseguir com sua gravidez como as que
preferem interrompê-la para pôr fim ou minimizar um estado de sofrimento."
Mas ele não se manifestou
publicamente sobre a possibilidade de descriminalizar o aborto de forma geral,
até o terceiro mês de gestação.
Celso
de Mello
O ministro Celso de Mello
também votou a favor da chamada "antecipação terapêutica do parto"
(interrupção da gravidez) em caso de anencefalia. Mas, até agora, não fez
comentários públicos sobre permitir o aborto até a décima segunda semana.
Nos bastidores, já
comentou que a criminalização pode, eventualmente, ser vista como uma violação
a tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil.
Matéria original no site
da BBC Brasil, disponível aqui.
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